Compartilho com você, porque também ...
De uma amiga ganhei nesta semana, o maravilhoso arranjo que você vê ilustrando esta postagem, de outra, o livro A riqueza do mundo, de Lya Luft, de onde extraí o capítulo 18 - Sobre a amizade.
"Que qualidades a gente deve esperar de alguém com quem pretende ter um relacionamento amoroso?", perguntou o jornalista. Incrível as perguntas que nos fazem.
Respondi o que acredito: "Aquelas que se esperaria do melhor amigo."
Pode ser um bom critério. Não digo de escolha - pois amor é instinto e intuição -, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se distrair.
O resto, é claro, no amor seriam os ingredientes da paixão, que vão além da razão e da sensatez, passageiro terremoto de delícias que faz tudo valer a pena, que promove os maiores erros e os melhores acertos. Salva-nos eventualmente de um desacerto irremediável a sensação que vem das entranhas, ou das tripas da alma, ou do inconsciente: o nosso instinto de sobrevivência.
A velha misteriosa intuição, que às vezes falha nessa onda de euforia e susto.
Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu.
Falo daquela pessoa para quem posso telefonar não importa onde ela esteja, nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". (Ainda não tive que recorrer a isso, mas, se precisar, sempre haverá alguém, e isso me conforta.) E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.
A boa amizade nos poupa muita inquietação, desconfiança e ciúme. Não precisamos sondar nossas tripas, interrogar nosso inconsciente, para ter um amigo e confiar nele. Em geral um olhar bom, uma conversa sossegada ou interessante, pequenas maneiras de alguém novo se instalar na nossa vida,
Com sorte, para alguma alegria.
Com cuidados, para sempre.
Com alguma sabedoria, sem drama.
Está ali, o amigo, a amiga. presença apaziguadora e ao mesmo tempo interessante, aquela dos diálogos intermináveis, das confidências, dos telefonemas às vezes só pra jogar conversa fora, dar risada, e iluminar o dia.
E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar, nem compreender, nem perdoar, nem fazer malabarismos sexuais, num inventar desculpas, nem esconder rusgas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo fantástico e tão exigente (quando não tedioso, o que é de assustar).
Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos e algumas reais amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar. Algumas estão comigo há décadas, outras são recentes, e houve alguma que, nem sei mais por que motivo, me descartou (ainda me dói quando recordo).
Minha alegria vem daquelas para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, também tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Com uma dessas amizades posso fazer graça ou fazer fiasco, chorar, eventualmente dizer palavrão quando me irrito ou quando esmago o dedo na porta. (ou sempre que me der vontade).
A amizade é um meio-amor, sem algumas das qualidades dele, mas sem o ônus do ciúme - o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. É par rir junto, dar o ombro pra chorar, criticar (com delicadeza, por favor), é pra apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar no minuto seguinte, sem ter que dar explicação alguma.
Sem cobrança.
Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair pra pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com os dela, ou até se não tem criança naquele colégio.
Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se sente a última das mulheres, levou fora do namorado, o marido foi grosso, qualquer coisa dessas, e ele chega confortando, chamando de "minha gatona" mesmo que a gente esteja um trapo.
Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos: "Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta". O marido morreu, os filhos seguiram suas vidas, e ela ficou num desertos em oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça.
Mais de uma vez queixou-se, mas nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. Que amigos não são frutos do acaso: são cultivados com...amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método, sem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes falta nem luz nem espaço nem afeto.
Quando em certo período o destino havia tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, quase o sentido de tudo, foram amigos, amigas - e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos - que seguraram as pontas.
(Eram pontas ásperas aquelas.)
Com eles, sem grandes conversa nem palavras explícitas, aprendi solidariedade, e reavivou-se em mim, para sempre, o valor da amizade.
Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, amigos e amigas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada - porque às vezes eu sou tudo isso, ah sim.
Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, ás vezes intrometido e irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna ou vai estar lá para nós, ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulsos e abrigo, e nos faz ser melhores.
Quem sabe por isso velhos casais se tornam até fisicamente parecidos: porque na cumplicidade de uma relação que não perdeu todo o encanto, mas preserva interesse e diferenças, permaneceu entre eles, com jeito de amizade, um bom amor.
Obrigada Bia, obrigada Cris!